Crítica Literária – Ocidente, de Alberte Momán Noval

 


Ocidente é uma obra ambiciosa, inquietante e profundamente simbólica do autor Alberte Momán Noval, que se insere numa tradição literária crítica e alegórica, evocando elementos de distopias filosóficas, realismo grotesco e poesia de resistência. Trata-se de uma narrativa polifônica e fragmentária, cuja linguagem é ao mesmo tempo poética e política, carregada de imagens sensoriais intensas e metáforas que denunciam o colapso ético do mundo contemporâneo.

Dividido em três partes — Não há ninguém perto de si, Diz-me o teu nome e Ocidente — o livro se desdobra num espaço-tempo indefinido, onde o real se contamina com o simbólico e onde as personagens, quase sempre anônimas, transitam entre a alienação existencial e a urgência de resistir ao apagamento da memória, da identidade e da humanidade.

A decomposição do Ocidente

O título da obra já anuncia sua ambição crítica: “Ocidente” não é apenas uma localização geográfica, mas o símbolo de um modelo civilizacional em decadência — individualista, patriarcal, violento, racista e desigual. Ao longo da narrativa, essa decadência se manifesta através de imagens como cidades bombardeadas, massas de migrantes em fuga, corpos descartados, sexo maquinal e a natureza em colapso. A civilização ocidental é retratada como uma estrutura em ruínas, sustentada por simulacros de poder e identidades frágeis.

A metáfora das baratas e dos roedores, que emergem do subsolo e invadem os espaços, simboliza a erupção do reprimido, o regresso do excluído, o apocalipse do “progresso”. Esses animais funcionam como indicadores de contaminação, mas também como resistências subterrâneas. O chão cede sob o peso da história não contada, e o passado que o Ocidente tentou soterrar volta para assombrá-lo.

Emaline: uma protagonista em deslocamento

A personagem central que percorre grande parte da obra é Emaline, figura nômade, resistente e profundamente marcada pela violência. Ela representa a força de quem carrega as cicatrizes do sistema, mas que escolhe não ser vítima passiva. Sua caminhada é física e simbólica: ela foge da guerra, mas também avança contra o esquecimento, tenta reconstruir um sentido em meio à destruição.

Emaline não é heroína no sentido clássico: ela é vulnerável, mas decidida. Vive experiências de abuso, solidão, perda e fome, mas também de compaixão e rebelião. Sua recusa em submeter-se a Bailey ou a Severim (duas figuras masculinas que encarnam, de formas diferentes, o patriarcado e o autoritarismo sedutor) é um dos pontos fortes da narrativa. A decisão de se isolar numa casa abandonada e queimar os corpos dos soldados mortos, ou a de alimentar-se deles em desespero, revela os limites extremos da sobrevivência num mundo onde a ética foi substituída pela urgência do corpo.

Sexo, poder e linguagem

O erotismo em Ocidente é apresentado de forma crua, muitas vezes desconfortável, como uma metáfora do domínio e da violência. O sexo é raramente consensual ou afetivo; é, na maioria das vezes, um jogo de força, um reflexo da desigualdade entre corpos, classes e gêneros. Essa visão explícita e brutal da sexualidade denuncia como o Ocidente transformou até os vínculos mais íntimos em relações de poder, mercado e opressão.

Da mesma forma, a linguagem é uma protagonista da obra. Há um uso constante de trocadilhos, frases filosóficas, intertextualidade e reflexões metalinguísticas. O texto se preocupa com o significado das palavras e sua manipulação. Há juízes, notários, rituais, nomes esquecidos ou proibidos. A linguagem é apresentada tanto como um meio de dominação como de libertação.

A imagem das crianças que cozinham restos humanos em caldeirões, ou dos “deuses de barro” sendo lançados na água para derreter, são críticas simbólicas ao papel das instituições e das crenças na manutenção do status quo ocidental. Tudo está em mutação: até a fé, até os deuses.

Memória e esquecimento: uma distopia interior

A luta contra o esquecimento é um dos fios condutores da narrativa. Diversos personagens afirmam “não recordar” eventos recentes ou relevantes, como se a memória coletiva estivesse sendo apagada, como numa distopia orwelliana. A figura da baleia branca que carrega os corpos sem memória é uma das imagens mais impactantes da obra — evoca tanto Moby Dick como um símbolo de tragédia e apagamento.

Ao final da narrativa, quando Emaline presencia a chegada de uma nova seita política-religiosa com seus estandartes e figuras de barro, há uma sensação ambígua: estamos assistindo ao nascimento de uma nova fé, ou apenas à repetição de um ciclo de dominação? A resistência de Emaline, sua solidão teimosa, parece ser o último reduto de uma humanidade possível.

Estilo e inovação formal

A escrita de Momán é densa, lírica, muitas vezes vertiginosa. Ele recorre a períodos longos, descrições sensoriais, elipses e fragmentos. A leitura não é fácil: exige atenção, tempo e uma abertura para o estranhamento. O autor não oferece explicações mastigadas nem personagens unidimensionais. Seu realismo grotesco lembra autores como Kafka, Elfriede Jelinek ou J. G. Ballard, mas com uma marca própria, muito ligada à sua experiência galega e à literatura de denúncia.

A estrutura aberta, quase episódica, reforça a ideia de colapso narrativo: assim como o mundo está em ruínas, também o enredo se desfaz, se reconstrói, se desvia. Há saltos temporais, mudanças de foco e um fluxo narrativo que emula o pensamento fragmentado da contemporaneidade.

Conclusão: uma alegoria urgente

Ocidente é uma obra que não se lê para passar o tempo: lê-se para confrontar-se com perguntas difíceis, para rever ideias feitas sobre civilização, progresso e identidade. É um livro perturbador, por vezes desconcertante, mas sempre necessário. Emaline é uma dessas personagens que permanecem depois do fim do livro — não pela sua heroicidade, mas por sua humanidade crua.

Momán escreve como quem arde por dentro, e Ocidente é o reflexo disso: um grito contra o esquecimento, uma elegia às ruínas do nosso tempo, uma proposta para pensar como — e se — ainda é possível resistir.