Crítica literária sobre Erótica, de Alberte Momán


Há livros que não se leem: respiram-se. Erótica, de Alberte Momán, é um desses raros volumes que transcendem a leitura para se converterem em experiência sensorial, numa espécie de respiração partilhada entre o texto e o leitor. Publicado em 2014, e vencedor do prémio Francisco Añón uma década antes, o livro condensa um dos momentos mais intensos e depurados da escrita de Momán. O seu título, que poderia sugerir a facilidade do erotismo explícito, desmente qualquer banalidade: o que aqui se joga é o corpo como linguagem, o desejo como modo de conhecimento e o amor como uma forma de exílio. Tudo em Erótica vibra entre a carne e o verbo, entre o toque e a palavra que tenta fixar o toque antes que ele se desfaça.

Desde os primeiros versos, o leitor percebe que Momán não escreve sobre o erotismo — ele escreve a partir do erotismo, como quem se move dentro de uma substância quente, instável, feita de pulsação e respiração. “Abraça-me / como o úbere do mundo”, diz um dos primeiros poemas, num gesto inaugural de entrega que não distingue o humano do cósmico. A carne é o ponto de contacto com o mundo, e é através dela que o sujeito poético se interroga e se revela. O corpo da mulher, o corpo do amante, o corpo do próprio sujeito — todos se fundem num território indistinto onde a linguagem se mistura com o suor, o tempo se dissolve na respiração, e o prazer se converte em modo de ser.

O erotismo de Momán não é o da exaltação pornográfica, mas o da transcendência táctil. Há um lirismo físico que se expande para além do imediato, uma espécie de mística profana. A sexualidade, aqui, é um rito, e a palavra poética, o seu altar. “Sou também o imisericordioso / o eu que conheceste / quando ainda desejavas conhecer”, confessa o poeta, e nesse reconhecimento há tanto culpa como revelação. O corpo é instrumento e vítima, mas também via de salvação. Ao longo dos poemas, percebe-se que o ato erótico é também uma tentativa de reconciliação: com o outro, com o tempo, com a própria perda.

O texto desliza entre português e tradução inglesa, como se a própria língua fosse um corpo duplo, espelho de um desejo que não se cumpre totalmente. Essa duplicidade traduz o espírito da obra de Momán, sempre oscilante entre o íntimo e o filosófico, o concreto e o abstrato. Como em livros posteriores — As que dormen sobre a palla ou Lapamán —, o autor explora a tensão entre presença e ausência, entre o corpo que se oferece e o corpo que se afasta. Em Erótica, porém, essa dialética ganha uma pureza primordial: o poema não quer explicar o desejo, quer habitá-lo, e por isso cada imagem parece emergir do contacto imediato entre pele e palavra.

A escrita de Momán tem a temperatura do sonho, mas a precisão do gesto. Há uma sensualidade que se constrói no detalhe, no movimento minúsculo: “uma gota de suor / escorregadiça / no mole morno do contacto”. Cada verso é uma aproximação, uma tentativa de tocar o indizível. O corpo amado é presença e miragem, e o poema é o lugar onde essa miragem se materializa por instantes. Daí a recorrência das imagens líquidas — o suor, o sangue, o oceano —, que traduzem a fluidez do encontro erótico e a impossibilidade de o fixar. Ler Erótica é mergulhar nesse fluxo e aceitar a vertigem de um prazer que, ao mesmo tempo que se oferece, anuncia a sua perda.

O erotismo, para Momán, é também uma forma de escrita. Há um paralelismo constante entre o ato sexual e o ato de escrever: ambos são movimentos de entrega, ambos implicam a anulação do sujeito no outro. “Traça / concretamente / no compor um corpo longe de um mesmo”, escreve o poeta, e é como se definisse o próprio gesto poético. Compor um corpo fora de si, criar através da ausência, desejar o que se escreve e escrever o que se deseja — é esse o mecanismo interno da sua poesia. O texto é corpo, e o corpo é texto; o prazer é uma sintaxe.

Em vários momentos, a voz poética parece falar não apenas à amada, mas à própria língua. “Ofereço a minha erótica / ao teu subconsciente”, lemos, e poderíamos entender “subconsciente” como metáfora da linguagem: um território oculto, indomável, onde o poeta se submete e se redescobre. A entrega amorosa torna-se, assim, metáfora da criação literária. E é talvez por isso que a dor e o prazer aparecem sempre entrelaçados — porque toda criação implica perda, e todo amor contém a semente da ausência.

Na poética de Momán há uma consciência aguda da temporalidade. O corpo é transitório, mas a palavra tenta resgatar-lhe um eco. “O tempo passa / cumprido”, diz um verso, e a ideia de cumprimento aqui é ambígua: o tempo realiza-se, mas também se consome. O erotismo é o instante em que o tempo se suspende, e o poema, o esforço de eternizar esse instante. O resultado é uma escrita intensamente efémera e, ao mesmo tempo, obstinadamente duradoura. Cada poema é uma combustão breve que deixa, contudo, um resíduo de eternidade.

Se compararmos Erótica com outros momentos da obra de Alberte Momán, percebemos que aqui o autor opera uma depuração radical. Em livros como Lapamán ou A realidade difusa, o corpo aparece já imerso em contextos sociais, simbólicos, ou até distópicos; em Erótica, ele é puro elemento primordial, um território sagrado onde a identidade se dissolve. O erotismo funciona como origem e destino, e a linguagem serve de via mística — uma tentativa de aceder à totalidade através da fragmentação do prazer.

O poeta não evita a crueza do desejo, mas também não se deixa aprisionar por ela. O erotismo aqui é linguagem espiritual: “Perdi a memória / no fundo do teu umbigo”, diz o sujeito, e a imagem, simultaneamente terna e brutal, condensa todo o espírito do livro. O umbigo é centro e abismo, é o ponto de onde viemos e para onde regressamos. Ao perder a memória, o amante anula o tempo e regressa à origem — a esse “além de todos os tempos” de que o próprio texto fala.

Há em Erótica uma constante tensão entre pureza e impureza, entre o sagrado e o carnal. O poeta busca um absoluto, mas fá-lo através da matéria mais concreta: o suor, o sangue, a saliva, o calor da pele. A transcendência, aqui, não está no além, mas na carne. O amor é uma forma de conhecimento físico e espiritual. “Complicar a metamorfose / no corpo de ambos”, escreve Momán — e a metamorfose é precisamente o lugar onde o humano se torna verbo e o verbo se faz carne.

A musicalidade da linguagem reforça essa fusão. O ritmo é orgânico, respirado, e o verso livre adapta-se à pulsação do corpo. Não há aqui retórica nem ornamento; há uma voz que emerge da intimidade, como um murmúrio entre amantes. O uso do espaço branco, das pausas e dos silêncios, cria uma respiração quase física no texto. Ler Erótica em voz alta é escutar um corpo que fala, mas também que geme, que se cala, que suspira. A poesia converte-se em partitura da carne.

Interessante é também a forma como Momán incorpora uma dimensão de perda e memória. O erotismo não é apenas encontro, é também separação, ausência, lembrança. “Guardo o fumo nos lábios / da tua última beata”, diz um dos poemas, transformando o gesto banal de fumar num ritual de recordação. O corpo ausente continua presente através dos vestígios — o fumo, o suor, o eco do prazer. O amor, no fundo, é uma forma de luto.

Nesse sentido, Erótica antecipa algumas das preocupações existenciais que se tornarão centrais em livros posteriores. A consciência da finitude, o olhar sobre o tempo e a perda, a busca de sentido no gesto mínimo — tudo isso já pulsa aqui, mas filtrado pelo filtro sensorial do erotismo. Momán parece dizer-nos que só podemos compreender a morte através do corpo, e que o prazer é, paradoxalmente, a nossa forma mais lúcida de intuir a finitude.

Outra dimensão fascinante de Erótica é o modo como dissolve as fronteiras entre o eu e o outro. A fusão amorosa é também uma fusão identitária. “Gently / sensing a naked / body / inside my own”, lê-se na tradução inglesa, e a imagem resume a essência do livro: o corpo do outro como extensão do próprio, o amor como perda de fronteira. Essa entrega total, porém, nunca é serena: há sempre uma sombra de solidão, um eco de ausência. “De morrer sentirás-te longe / e a um passo”, escreve Momán, e é como se o próprio amor fosse sempre esse passo que não se pode dar.

A escrita de Momán, com a sua limpidez e o seu rigor, evita qualquer tentação de sentimentalismo. A emoção nasce da precisão, não da exaltação. Cada verso parece medido pela respiração, e cada imagem, trabalhada até ao limite da transparência. A intensidade não vem do excesso, mas da contenção. Nesse sentido, Erótica é um livro de equilíbrio: entre o corpo e o espírito, entre a entrega e a contemplação.

Também é, inevitavelmente, um livro sobre a linguagem. O erotismo é aqui um idioma alternativo, feito de gestos, silêncios, toques e respirações. Momán sabe que o amor é intraduzível, mas ainda assim tenta traduzi-lo — e é dessa impossibilidade que nasce a poesia. A tradução inglesa que acompanha o texto original reforça essa ideia: cada palavra ecoa na sua versão estrangeira, duplicando o desejo e a distância. A língua torna-se corpo, o corpo torna-se língua, e o poema, um espelho de ambos.

No conjunto da obra de Alberte Momán, Erótica ocupa um lugar singular. É talvez o livro mais concentrado, mais orgânico, mais íntimo da sua produção poética. Não há aqui personagens nem narrativas, mas uma sucessão de epifanias sensoriais que, juntas, compõem uma cosmogonia da carne. Se em outros volumes o autor explora o social, o político, o metafísico, aqui a sua voz reduz-se à essência: o corpo como origem de tudo.

E, no entanto, há uma profunda espiritualidade nesta materialidade. O erotismo, em Momán, não é uma celebração do corpo isolado, mas da comunhão que o corpo permite. É uma liturgia laica, uma oração feita de gestos e murmúrios. Ao fim da leitura, o leitor não sai excitado — sai purificado, como quem atravessou um rito de iniciação. Há uma estranha serenidade no meio da febre.

O último poema encerra essa viagem com uma nota de entrega e despojamento: “Podes colher de mim / tudo quanto precisares / alimento-me só de saudade.” A saudade, palavra intraduzível, encerra o espírito do livro. Depois do amor, o que resta é o eco. Depois do corpo, o que fica é a ausência. Mas essa ausência não é vazio: é o espaço onde o poema continua a respirar.

Em Erótica, Alberte Momán constrói uma geografia do desejo onde o corpo é o centro do mundo e a palavra, o seu mapa. A poesia nasce do contacto, mas também da distância; é o traço deixado por um gesto que já passou, mas que continua a pulsar na memória. Ler este livro é aceitar que o amor é sempre incompleto, e que é precisamente dessa incompletude que nasce a beleza.

Com uma escrita que conjuga o rigor da forma e a intensidade da experiência, Momán oferece-nos uma obra de rara coerência e pureza. O erotismo aqui é sinónimo de verdade — não apenas carnal, mas existencial. O corpo é o lugar onde o mundo se diz, onde o ser se experimenta, onde o tempo se suspende. E o poema é o espaço onde tudo isso se inscreve, ainda quente, ainda vivo, antes que o silêncio regresse.

Erótica é, pois, um livro de amor no sentido mais profundo do termo. Um amor que fere e cura, que destrói e salva, que se consome na mesma medida em que se revela. Um amor que é também linguagem, e que faz da poesia o seu corpo. No fim, talvez seja isso o que Momán nos ensina: que amar é escrever, e que escrever é, inevitavelmente, uma forma de amar.