Entre a solidão e a distopia: um olhar crítico sobre Adela no País de Ural, de Luís Mazás

 

Adela no País de Ural, de Luís Mazás, é uma obra profundamente literária e existencial, cuja leitura desafia convenções narrativas e interpela o leitor com uma prosa poética, introspectiva e crítica. O romance, publicado pela M Editora, é ao mesmo tempo um exercício de memória, uma reflexão sobre a alienação contemporânea, e uma alegoria distópica com ressonâncias kafkianas, surrealistas e até beckettianas. Esta crítica propõe-se a analisar os principais eixos temáticos e estéticos do livro, destacando o tratamento da memória, da identidade, da crítica social e do feminino, bem como as implicações simbólicas da geografia ficcional de Ural.

I. Adela: figura da melancolia e do exílio interior

A personagem central, Adela, é construída como um arquétipo de mulher solitária, sensível e marginalizada. O seu percurso existencial é moldado por perdas afetivas (pais mortos, tia Amparo falecida, divórcio com Bráulio) e por uma rotina social desprovida de sentido. A sua solidão não é apenas circunstancial, mas existencial: ela vive entre memórias, saudades, fantasias e livros. Trabalha numa livraria, ambiente que funciona como metáfora de um mundo onde os objetos (os livros, os discos, as cartas) têm mais densidade afetiva e verdade que a realidade exterior.

A própria Adela parece recusar ou temer o contato com os outros. Ela cultiva um certo desdém pela racionalidade e pelo mundo objetivo, preferindo o refúgio da arte e da imaginação. Este afastamento do real é encenado não como escapismo, mas como resistência: a arte, o jazz, a poesia, o cinema tornam-se formas de preservar a subjetividade num mundo que a esvazia.

A construção da personagem remete, em muitos momentos, a figuras femininas da literatura e do cinema que desafiam os papéis convencionais atribuídos à mulher. Adela é uma livreira com nome de escritora (usa o heterónimo Rosália Ribas), mas também um ser errante, com traços de uma “Alice” deslocada num “país das maravilhas” que é, na verdade, um inferno sociopolítico — o País de Ural. Essa transição da vida concreta para um espaço alegórico marca a viragem distópica do romance.

II. Ural: distopia, absurdo e crítica social

A segunda parte do romance situa-se num território indefinido chamado Ural — nome que evoca os montes Urais e remete, simbolicamente, a uma fronteira entre dois mundos: Europa e Ásia, real e imaginário, razão e loucura. Ural, neste contexto, é a materialização de uma distopia pós-industrial onde reina a classificação totalitária dos cidadãos, o controle absoluto da vida e a divisão hierárquica da sociedade.

O ambiente é descrito como um espaço em preto e branco, como num filme antigo — uma escolha estética que alude não apenas ao passado e à nostalgia, mas também à perda da vivacidade e do sentido. Esta metáfora cromática reflete o estado emocional de Adela e sua dificuldade em perceber a realidade com clareza. A ausência de cores é um indício de alienação sensorial e espiritual.

Em Ural, a estrutura social é regida por uma lógica opressiva e absurda: os cidadãos são classificados por categorias (Z, ZF3, ZZ47), têm tarefas definidas segundo critérios arbitrários, e o único modo de ascender socialmente é através do assassinato de “inferiores”. A crítica aqui é evidente: Mazás ironiza o discurso meritocrático e denuncia a violência estrutural de um sistema que transforma o outro em inimigo, em descartável. O romance inscreve-se, assim, numa tradição literária que inclui Orwell (1984), Huxley (Admirável Mundo Novo) e Atwood (The Handmaid's Tale), mas também Kafka (O Processo) e Beckett (Esperando Godot).

A opressão em Ural é disfarçada de normalidade. A burocracia é desumanizante, os diálogos são muitas vezes delirantes, e as regras sociais beiram o absurdo. No entanto, essa caricatura do autoritarismo serve para expor aspectos do mundo real: a precariedade laboral, a exclusão social, a normalização da vigilância, o cinismo político. O conservador Farlop, por exemplo, é uma figura grotesca que encarna a arbitrariedade do poder burocrático. Ao mesmo tempo, personagens como Aquilino ou Rosa revelam a resistência e a dignidade dos que sobrevivem à margem do sistema.

III. Fragmentação narrativa e intertextualidade

Luís Mazás opta por uma estrutura narrativa fragmentária, onde se combinam cenas do quotidiano com episódios oníricos, cartas, reflexões ensaísticas, diálogos absurdos e inserções poéticas. Essa heterogeneidade estilística contribui para criar uma atmosfera de instabilidade, que espelha o estado psicológico da protagonista. A narrativa oscila entre o passado (memórias com a tia Amparo, o avô Emílio), o presente melancólico e o mundo fantástico-distópico de Ural.

A intertextualidade é um dos recursos mais marcantes da obra. Ao longo do texto, encontramos referências a Pessoa, Almada Negreiros, Cesariny, Billie Holiday, Bob Dylan, Tarkovski, Ripstein, Deleuze, Foucault, Sartre, Badiou e muitos outros. Essa constelação de autores, artistas e pensadores não é gratuita: ela constrói um universo simbólico que enriquece o sentido do texto e inscreve a protagonista num campo de pertença cultural e estética.

A intertextualidade também revela a filiação da obra com as vanguardas literárias e com a tradição crítica. Há uma clara recusa das formas convencionais de narrativa e uma aposta na fragmentação, na metalinguagem e na consciência estética. O leitor é constantemente desafiado a estabelecer conexões, a decifrar códigos, a mergulhar nas camadas simbólicas da obra.

IV. Género, marginalidade e utopia feminina

A condição feminina é um tema transversal ao romance. Adela representa uma mulher que vive à margem das estruturas de poder: não é mãe, não é esposa, não é amante convencional. Ela recusa os modelos tradicionais e reivindica o direito à diferença, à introspecção, ao desejo próprio. O episódio com Alberto Aguirre é paradigmático: ao inverter os papéis de sedução, Adela desmonta as expectativas de gênero e revela a fragilidade do narcisismo masculino.

Além disso, Adela encontra outras mulheres que partilham experiências de marginalização, como Rosa, a viúva anciã de Riba d’Ávia, ou a mulher do setor branco que lhe entrega a criança ao colo. A sororidade é aqui sugerida como resistência e alternativa à lógica patriarcal do sistema. Há uma utopia do cuidado e da sensibilidade que se opõe ao domínio da força e da racionalidade instrumental.

Mesmo nas situações de maior desespero, Adela mantém uma capacidade de sonhar. Sonhar com um país de bondade e de bruma, como no poema de Cesariny citado no livro. Sonhar com um mundo onde se possa dançar, cantar, viver com arte e sentido. Esta capacidade de fabulação — de manter viva a chama da imaginação — é talvez a forma mais radical de resistência que a personagem encarna.

V. O papel da arte: entre a catarse e o delírio

Em Adela no País de Ural, a arte — em todas as suas manifestações — é uma constante: jazz, pintura, literatura, poesia, cinema. Para Adela, a arte é refúgio, memória, mas também crítica e reconfiguração do mundo. Escutar John Coltrane, ler Juan Larrea, ver Balthus ou Almada Negreiros não são atos meramente estéticos, mas formas de habitar a vida com intensidade.

O diário de Amparo, os escritos escondidos sob o nome de Rosália Ribas, os poemas recitados, os filmes lembrados — tudo isso compõe uma estética da memória e da resistência. A arte aparece como alternativa a uma existência reificada, como campo onde o humano se reconhece em sua complexidade e sensibilidade.

Contudo, há também uma dimensão ambivalente: a arte pode ser alienação, como o próprio Alberto Aguirre representa, com a sua obsessão com relógios e métodos. Há o risco de o delírio estético se transformar em fuga do real. O desafio proposto por Mazás é equilibrar a contemplação estética com o engajamento político, o sonho com a ação.

VI. Conclusão: entre a alegoria e o real

Adela no País de Ural é uma obra ambiciosa, que se inscreve numa tradição crítica e poética da literatura contemporânea. Luís Mazás cria um universo simbólico poderoso, onde o íntimo e o político se entrelaçam, e onde a protagonista feminina se destaca como figura de resistência num mundo hostil.

O romance não é de leitura fácil. Exige do leitor atenção, sensibilidade e abertura à linguagem simbólica. Mas recompensa com uma experiência estética densa e transformadora. É uma obra que se inscreve nos interstícios entre o real e o imaginário, entre o político e o poético, entre o ensaio e a ficção. Uma narrativa para ser relida, comentada e sentida.

Em tempos de crescente desumanização e automatismo social, Adela no País de Ural propõe uma reflexão profunda sobre o que significa resistir, lembrar e sonhar. E talvez, como diz o verso que Adela repete ao fechar os olhos, ainda tenhamos que fugir de nós mesmos para reencontrar os pedaços da nossa pele — da nossa humanidade.