O livro Origem e Ruptura, de Ramiro Vidal Alvarinho, publicado pela M Editora com desenho gráfico de Julio C. Seijas, apresenta-se como uma composição poética profundamente marcada pela tensão entre o passado coletivo e o trauma individual. Dividido em três partes — “Independencia”, “Bitácora de viagem” e “Dúas palavras” —, o volume constrói, com linguagem ora inflamadamente política, ora intimamente existencial, um itinerário lírico que conjuga denúncia social, evocação da memória e meditação sobre a morte.
I. Uma poética da origem traída
A primeira secção, “Independencia”, ergue um canto elegíaco e ao mesmo tempo combativo em homenagem à “mai” — figura que pode ser lida em múltiplas camadas: mãe biológica, terra-mãe, nação ou até mesmo uma civilização devastada. Neste conjunto, a voz poética se posiciona como um filho fiel, mas ao mesmo tempo como alguém forçado à separação. Em “abandono-te espida, derrotada”, o eu lírico expressa sua despedida de uma entidade que, apesar de amada, se encontra em ruína:
“vivemos dentro tantas primaverasna liberdade das tuas geometriasque hoje admira a tua desolaçom”
A “mai” aparece invadida, morta, esquecida, ultrajada por um poder anônimo e devastador — o “ferro capitalista”, os “escritórios” que assinam destinos, a “urbe” que desfaz identidades. O espaço urbano, aqui, simboliza o apagamento de um território ancestral, e a linguagem do poeta é impregnada de imagens bélicas e apocalípticas. Contudo, há resistência. O sujeito lírico não apenas observa: ele participa de conclaves, dança círculos tribais, escreve slogans, canta em marchas. O poema “Prometemos-te nova” reafirma essa promessa de redenção e continuidade.
A poética da origem traída por Ramiro Vidal opera por um registro de insubmissão. Os versos são carregados de vocabulário político, revolucionário e simbólico, aproximando-se de um tom épico de pequena escala, uma epopeia das ruínas e das periferias. A lírica torna-se um instrumento de denúncia e esperança, traçando paralelos com as tradições libertárias latino-americanas, os movimentos indígenas e os combates anticoloniais.
II. A travessia como experiência poética
A segunda parte do livro, “Bitácora de viagem”, marca uma virada no tom e no foco. Os poemas aqui revelam um lirismo mais contemplativo, embora ainda fortemente enraizado na ideia de deslocamento — físico, emocional, histórico. Trata-se de uma escrita de viagem, mas de uma viagem interior, existencial, marcada por paisagens afetivas que se fundem com lugares concretos, sobretudo da Galiza.
Neste conjunto, Compostela, A Corunha, Vigo e outras cidades galegas tornam-se palcos de encontros, reflexões e epifanias. O poema “Meia Distáncia em descafeinado de máquina, sobre Dezembro” abre esta secção com uma ambientação cotidiana — uma estação de comboios, um café, a passagem do tempo — e introduz a sensação de repetição, de cansaço, de melancolia urbana. Aqui, o cotidiano é transfigurado em matéria poética. A chuva, os ruídos, os motores e o café tornam-se imagens do exílio interior.
Os poemas “Torres de amêndoa no concerto de pedra” e “Janis Joplin em Compostela” exemplificam bem a fusão entre cultura local e referências universais que permeia esta parte. O segundo, em especial, é um exercício de surrealismo afetivo: a presença impossível de Janis Joplin em Compostela torna-se metáfora de um espírito contestatário que transcende tempos e geografias. A cantora americana, mesmo sem nunca ter estado na Galiza, “torna-se compostelana” no imaginário do poeta:
“Porque Janis Joplin desde esse momento bem puido passear com asMarias pola Ferraduraou participar nas assembleias operárias em Salgueirinhos”
Essa ideia de fusão entre tempos e mundos — entre o que é e o que poderia ter sido — é uma constante em Origem e Ruptura. A viagem nunca é apenas um deslocamento físico: é uma tentativa de reinvenção da memória, de ampliação do presente, de aproximação de uma utopia afetiva.
Poemas como “Salitre com cerveja” e “Solpôr em Santa Cruz” recuperam, com imagens sensoriais e tácteis, momentos de epifania em meio à rotina. A cerveja, o salitre, a luz do sol, o som da música e o calor das vozes tornam-se signos de uma felicidade frágil, mas intensa. Não há escapismo: há, sim, a construção de espaços de resistência afetiva no ordinário.
III. A ruptura como luto existencial
É na terceira parte, “Dúas palavras”, que o livro alcança seu ponto mais sombrio e devastador. Aqui, a poética de Ramiro Vidal mergulha no território do luto, da morte e do desespero absoluto. A sequência de poemas numerados constrói uma narrativa da perda: a perda de alguém amado, talvez uma mãe, talvez uma companheira, talvez uma versão de si mesmo. “Dúas palavras”, as duas palavras que mudam tudo — “foi-se”, “morreu”, “acabou” — funcionam como o estopim do colapso emocional e ontológico.
“Duas palavras e conhecim umha dor mais alá do físicocrônica, aguda, brutal, crua, desquiciante”
A morte, aqui, é experimentada como fenda, como abismo, como frio insuportável. A “fervença do silêncio” é uma das imagens mais recorrentes e potentes desta secção. Ela nomeia o instante de passagem, o limiar entre a presença e o vazio, entre a linguagem e o indizível. O poeta escreve a partir desse lugar de devastação, como quem procura manter viva a memória do que se foi e, ao mesmo tempo, compreender os próprios limites do ser e do dizer.
O recurso à imagem da “fenda” sugere não apenas o vazio causado pela morte, mas também uma ruptura radical com o mundo dos vivos, uma exclusão do tempo. A “caixa de vidro” que encerra o corpo morto, o “pêndulo” que balança e marca o instante final, o “reptil” que serpenteia entre a vida e a morte — todos são símbolos de um universo no qual o sujeito lírico já não se reconhece completamente vivo.
No entanto, há um esforço de resistência mesmo neste cenário terminal. O poema XX relata:
“tecim um poema críptico de palavras suicidasideogramas de metal no calendário da névoa”
O gesto de escrever permanece, mesmo quando a linguagem parece fracassar. A escrita é, aqui, não só um testemunho, mas uma tentativa de travessia. A poesia torna-se uma forma de sopro último, de resistência frente à destruição definitiva.
IV. Estilo, linguagem e forma
Estilisticamente, Ramiro Vidal adota uma dicção híbrida e rítmica, fortemente marcada pela musicalidade e pela ruptura sintática. Muitos dos poemas são compostos por frases fragmentadas, elípticas, como se cada linha fosse uma tentativa de captar o essencial antes que ele escorra pelas frestas do tempo. A ausência quase sistemática de pontuação formaliza essa fluidez e essa tensão latente entre o dito e o indizível.
A utilização do galego-português (com grafia reintegracionista) reforça a dimensão política e cultural da obra. Escolher essa ortografia — próxima do português e resistente à padronização espanhola — é já um ato de afirmação de identidade e de pertença a uma tradição ampla e diversa. Isso se alinha com o espírito do livro: Origem e Ruptura é, em grande medida, um livro sobre a origem como território de reivindicação e a ruptura como ferida histórica.
Além disso, o autor utiliza uma série de referências culturais — históricas, literárias, musicais — que densificam a tessitura semântica dos poemas. Nomes como Rosalia de Castro, Cervantes, Paco del Riego, Carvalho Calero, Janis Joplin e lugares simbólicos como o Obradoiro ou o Barbança ancoram os poemas numa geografia real e imaginada, numa tradição que é simultaneamente local e universal.
V. Conclusão: um livro de combate e de ternura
Origem e Ruptura é um livro de combate e de ternura. Um livro de palavras afiadas como lâminas, mas também de imagens delicadas como lembranças partilhadas. Um livro que se alimenta da raiva contra o apagamento cultural e da dor provocada pela morte, mas que se recusa a ceder ao cinismo ou à resignação.
Ramiro Vidal constrói uma obra de resistência afetiva, na qual o amor à terra, à memória e aos corpos perdidos se manifesta por meio de uma linguagem viva, intensa e inventiva. Seus poemas não procuram consolar nem oferecer respostas fáceis. Eles testemunham, denunciam, celebram e lamentam. Eles nos arrastam para a fenda — e ali, na fervença do silêncio, ainda ousam sussurrar versos.
No fim, talvez a origem nunca se recupere, e a ruptura jamais se cicatrize. Mas entre esses dois polos, a poesia oferece sua centelha: frágil, mas luminosa. Como escreve o próprio poeta:
“porque eu libertaria-teda prisom de lousa”
Essa promessa — libertar os mortos, reinvidicar os desaparecidos, reinventar o tempo — é o gesto último de amor e insubmissão que este livro encarna com intensidade rara.